A coleta de flores tem início ao raiar do sol, no domingo. O ar refrescante da madrugada logo dará lugar à intensidade luminar do sol. Gotas de orvalho escorrem pelas folhas e feixes de luz embrenham e atravessam, pouco a pouco, as brechas entre os galhos, iluminando progressivamente todo o templo. Colher flores às centenas não deixa de ser monótono, embora permita acompanhar de perto pequenas modificações e minúsculos detalhes – preâmbulo, e relance, das transformações do (e no) templo em dias de puja. Cada árvore se rebantará e expandirá com o desabrochar das flores. Branco, rosa, fúcsia, vermelho, lilás, roxo, amarelo, laranja, dourado, tons indefinidos sobejados por luz e sombra: cada pétala transforma-se à sua maneira.
Várias flores não serão colhidas, não resplandecerão, ou darão sinais de esmorecimento. Algumas estarão relativamente murchas, mas dentro de minutos reluzirão. Outras tantas já refletem beleza e vivacidade, prefigurando a composição da guirlanda, esse todo maior do qual farão parte. Já aquelas em número escasso, ainda que belas, talvez não convenham para uma composição harmônica. Deve-se obter quantidade abundante e diversificada de flores, mas não a esmo. A forma final da guirlanda, sua composição, tamanho e proporção, devem ser prefiguradas por quem as apanhará. Por vezes há jasmins em abundância, porém poucos oleandros, ou vice-versa. Como conciliar escassez com a fartura?
Oleandros são indispensáveis, sendo amarrados, junto a um punhado de folhas da árvore sagrada neem, a um dos braços das murtis [formas esculpidas] de divindades que irão se manifestar nos corpos de especialistas religiosos no decorrer do dia para conduzir tratamentos terapêuticos. A neem é a própria Divindade, ou, citando meus interlocutores, Mariamma toma a forma de neem para curar. Esse instrumento/veículo de cura é utilizado pela Deusa desde tempos imemoriais, quando a varíola assolou vilarejos da Índia. E do subcontinente os antigos trouxeram a árvore sagrada, pois não é possível fazer puja [ofertar] sem neem. A íntima conexão entre o culto à Kali e a Índia seria incompleta se limitada fosse à manutenção, de um lado a outro do oceano, do panteão de divindades. Uma árvore nativa do subcontinente faz parte do ser de Mariamma. Sua transplantação seria incompleta sem a neem e apesar das distâncias, a geografia sagrada da Índia, para parafrasear Eck (2012), se materializa nas árvores de neem plantadas no templo de Blairmont. Murtis nunca deixam de ser adonardas com guirlandas, ainda que artificiais e de plástico. A rotina não permite sua confecção diária – sonho acalentado por sacerdotes, mas de difícil concretização por conta das necessidades práticas de devotos. Ainda assim, murtis nunca estão nus, e anseiam, elas próprias, por serem preenchidas com diversas camadas de guirlandas de flores frescas, ou ao menos receberem um punhado de flores. Ofertar é zelar.
Deixar de ofertar e/ou fazer puja não é um ato livre de consequências. As divindades precisam ser glorificadas sempre. Ao mesmo tempo, elas têm ciência das dificuldades de seus filhos, mostrando-se compreensivas caso alguém não tenha recursos para fazer pujas mais elaboradas. Contudo, mesmo um mendigo faminto pode regalar as deotas com flores. Quem se furta até mesmo de depositá-las nos altares não tem direito de queixar-se da vida e de pleitear algo dos deuses. Não é possível dar tudo às divindades; mas sempre há flores.
Árvores floríferas exigem dedicação. Devem ser regadas frequentemente, não apenas nos dias de domingo, do contrário desbotam e desfalecem. Intempéries climáticas não são, entretanto, os únicos agentes de esmorecimento das árvores. Pessoas impuras podem gerar efeitos irreversíveis e há uma constante vigilância sobre quem pode, ou não, ter contato com as flores. É indispensável se abster do consumo de alcool, de fibra animal e de relações sexuais para adentrar em um templo. Do contrário, não só a presença, mas incluso o contato com itens rituais, murtis e ofertas deve ser evitado. Por essa razão, é preferível que apenas membros assíduos do templo colham flores, em especial aqueles que têm por incumbência zelar por altares. Frequentadores do local trazem suas flores de casa, mas nunca guirlandas prontas. Aos poucos, as pessoas afluem ao local e antes de rezar estendem tecidos no chão, onde preparam ofertas e guirlandas. Uma vez prontas, depositam-as no altar, sem ter contato direto com as murtis. São os assistentes que, após girarem esse artefato em volta do fogo (para eliminar eventuais impurezas), colocam as guirlandas no pescoço das murtis, que não meras representações das divindades, objetos inertes, mas as divindades em si mesmas (Autor, 2018). O templo igualmente oferta suas guirlandas, que devem ser particularmente majestosas, demorando horas para serem feitas. Indivíduos que manifestarão tal ou qual divindade devem, necessariamente, ofertar ao menos uma guirlanda.
Outrossim, a disposição de espírito das pessoas também produz efeitos. Falta de foco e concentração pode arruinar todo o trabalho envolvido na confecção da guirlanda, regalo bem ao gosto das divindades. A destreza das mãos, com seus gestos ligeiros e harmônicos, de crianças a idosos com dificuldade de locomoção, impressiona ao observador externo. Sobretudo porque não se toma flores de qualquer jeito, seja para colhê-las, dispô-las em guirlandas, alcançá-las a outrem ou ofertá-las às divindades. Rápidos em palavras e em suas lides no templo, devotos da deusa Kali como que intercalam pequenas pausas em seus afazeres quando depositam ofertas como flores aos pés das murtis, em seus altares. Antes de serem entregues, essas ofertas são aproximadas do corpo – dos sentimentos e pensamentos – de quem faz a devoção. As mãos fazem um movimento de dentro para fora, transbordam algo de si para as divindades.
Um fio de cor branca é enlaçado à agulha. Flores são apanhadas em número simétrico. A agulha é posta em ação de forma cadenciada, atravessando caules, como se dançasse lentamente, um passo por vez. O fio é preenchido; torna-se carregado de sequências de flores amalgamadas com folhas; ganha corpo, se alarga, brota, germina. Mais do que um simples objeto, é um emaranhado das linhas de interconexões múltiplas entre divindades e humanos.
Fazer puja, ofertar, é mais do que um ato mecânico. Demanda envolvimento, empenho e comprometimento, inclusive mental. Assim, não é apenas no momento das rezas que os pensamentos devem estar enfocados nas divindades. Ofertar é dar algo de si, é transmitir sentimentos, afetos, estados de espírito. Fazer guirlandas de flores frescas é, portanto, um dos atos mais singelos e verdadeiros de devoção: exige tempo, paciência, concentração, habilidade, senso de beleza e harmonia, cuidado (lindos ornamentos podem ser arruinados em dias de calor intenso), circunspeção, talento, gentileza e certo despreendimento: tal como o odor exalado de cada pétala, guirlandas têm existência relativamente fugidia.
Durante a realização da puja – oferta semanal às divindades conduzida por sacerdotes em nome do templo – alguns corpos chacoalham. A sonoridade dos cânticos, rezas, tamborins, tambores invocatórios, sinos e demais instrumentos convoca a presença divina, que produz vibrações em devotos(as). A manifestação irrompe então, e a depender da ocasião, guirlandas serão colocadas nessas pessoas-divindades. Os movimentos corporais, animados pelo poder divino [shakti], ressoam, lançando ao ar flores despedaçadas por gestos intensos. Manifestações requerem água, para esfriar a temperatura de seus veículos. Essa torrente, primeiramente, dá maior vivacidade às flores – dá cor a pétalas ressecadas; ao cabo, entretanto, as torna murchas.
Fluir
É fundamental ressaltar: não se trata de mero acessório decorativo ou de uma troca unidirecional. Todas as murtis devem ser adornadas com ao menos uma guirlanda. As deotas que se manifestam nos corpos de humanos contam com um número extra de guirlandas, visto que antes da invocação parte delas é retirada das murtis e posta em volta do pescoço das pessoas que servirão de veículos aos deuses e às deusas. Não à toa, marlos ['médiuns'] se encarregam de zelar os altares das divindades que se manifestam em seus corpos.
Ofertas de devotos e de devotas são preparadas ao longo dia. Dispostas em altares, arrumados [pack] por assistentes, as ofertas têm sua matéria espiritual consumida pelos deuses e deusas, por meio das murtis (ver, dentre outros, Autor, 2018; Babb, 1981; Eck, 1981; Stephanides & Singh, 2000). Guirlandas têm contato com divindades – dispostas nos altares, envoltas nas murtis ou então redistribuídas entre marlos. Durante as sessões oraculares e tratamentos terapêuticos, as divindades que se manifestam transmitem seu poder [shakti] e sua energia aos devotos; concedem-lhes bençãos, alimentam-os com folhas de neem, oferecem regalos, como pétalas de flores. Objetos de veneração e devoção, deuses e deusas tornam os corpos de devotos mais permeáveis a parte de suas próprias essências. A Mother está em tudo; em pequenas e grandes coisas, costuma-se dizer em Blairmont.
Do solo às árvores, da ornamentação das guirlandas às murtis, das murtis às manifestações, das divindades em corpos humanos a devotos. Guirlandas entrelaçam flores e folhas, seus fios vinculam, constituem um circuito de comunicação. Movimentos das mãos enlaçam, interligam, atam e unem flores, sentimentos, divindades e pessoas. Guirlandas estão imersas em ciclos vitais, fazendo emergir, e renovando, os fios que ligam os humanos às divindades.
Amalgamar